Por Cátia Bandeira/Core Comunicação & Relacionamento
Chamem como chamarem, ela vai atender. Nascida Beatriz Gonçalves Pereira há 63 anos no Hospital Beneficência Portuguesa em Porto Alegre, é chamada por vários nomes. É mãe de santo, a mãe Bia do povo de matriz africana; a Bia da Ilha, a Pintada, onde mora há décadas; a Bia do Carnaval… “As pessoas me identificam e eu também me identifico, porque eu só sou porque os outros são; se os outros não forem, não sou. O movimento nesses espaços só me dá conhecimento. Esta sou eu. O eu coletivo, muitas pessoas me ensinaram e me ensinam. A minha vida é um aprendizado até o fim. Isso, às vezes, me inquieta, mas não me desestrutura para lutar”, diz Bia, colocando a complexidade da vida através da sua simplicidade e força monumentais.
No final da tarde da sexta-feira, 31 de janeiro, quando teve esta conversa para ser publicada no site da Fundação Gerações, interrompeu o deslocamento que a levaria a atividades de homenagem a Iemanjá, que seriam realizadas no domingo, 2 de fevereiro. Bia não para e não o fez nem quando sua casa e o Instituto Camélia, localizados na Ilha da Pintada, no Bairro Arquipélago da Capital, foram invadidos pela inundação de maio de 2024. Um dos tantos efeitos colaterais da tragédia foi a perda da memória. “Eu tinha fotos, tudo guardado e documentado, mas a enchente levou. É isto que eu falo, às vezes, de não ter certeza de quando as coisas aconteceram porque a minha mente não tem tudo”, explica Bia com uma nota quase imperceptível de lamento na voz.
O Instituto Camélia (IC), do qual Bia é vice-coordenadora, figura entre as cinco primeiras Organizações da Sociedade Civil (OSC) de Porto Alegre e Canoas a serem contempladas na primeira Chamada Pública Emergencial do Fundo Porto de Todos, lançada em maio, quando muitas áreas das duas cidades ainda estavam submersas. Além de suporte técnico, o IC recebeu capital semente inicial de R$ 20 mil para reformas e melhorias nos espaços e segue sendo apoiada pela Fundação Gerações.
Em mais de 40 anos como uma voluntária comunitária – é assim que ela se chama –, Bia tem encarado um desafio atrás e junto com o outro. Da delegada “que incomodou muito”, como a própria diz, atualmente é conselheira do Orçamento Participativo (OP). Tantas vezes conjugar o verbo lutar poderia tê-la transformado em uma pessoa ressentida. Não, a Bia: “Transformei em luta construtiva com amor”.
“As pessoas me identificam e eu também me identifico, porque eu só sou porque os outros são; se os outros não forem, não sou. O movimento nesses espaços só me dá conhecimento. Esta sou eu. O eu coletivo, muitas pessoas me ensinaram e me ensinam. A minha vida é um aprendizado até o fim. Isso, às vezes, me inquieta, mas não me desestrutura para lutar”
Beatriz gonçalves pereira
Como começou o teu envolvimento com a comunidade?
Vendo as necessidades e a precariedades da nossa região, que tem o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Porto Alegre. E o envolvimento sempre foi em busca de qualidade de vida, ruas, transporte, assistência social, saúde…Lutamos muito pela saúde.
Há uns seis ou oito anos, chegamos a deitar na BR-290 em um enfrentamento de todas as ilhas. Bia, didática, aproveita para explicar que o Arquipélago é composto pelas ilhas do Pavão, Grande dos Marinheiros e Flores. A da Pintada fica na ponta, sendo preciso entrar pelo município de Eldorado do Sul por via rodoviária.
Estou nesta luta desde os meus 20 anos. Só que não fiz nada sozinha, muitas pessoas estão junto comigo. E, olha, não sei se é mais difícil hoje ou antes. A gente não vê as coisas funcionarem direito, não tem plenitude de qualidade. Claro, tivemos muitas conquistas, mas ainda está muito aquém do que poderia porque não há interesse político.
Quando passaste a ser uma liderança e a se ver como tal?
A primeira vez foi quando os capuchinos (a Ordem dos Frades Menores Capuchinhos) chegaram à ilha querendo criar a Associação São Francisco de Assis. E, vendo a nossa atuação, pra lá e pra cá, briga com ônibus, me convidaram. Eu, mulher, negra da Ilha, disse que não queria participar de eleição. Mas eles insistiram, e eu queria aprender, sempre tive muita força. Fizeram a eleição, ganhei e fui a primeira presidente. Até hoje, eu falo com Inácio Pinzetta, que era frade e virou professor universitário.
Nesta trajetória, qual foi a situação mais importante ou impactante que vivenciaste?
Teve várias, todas foram impactantes…Teve essa da BR-290, uma questão de socorro para a saúde nas ilhas. Em outra época, brigamos pela construção da segunda alça da ponte do Guaíba, nós dizíamos que estava errado, e eles diziam que estava certo.
Foi, também, bastante marcante a gente ter conseguido tornar a Pintada independente dentro do orçamento participativo. E digo a gente porque foi a luta dos que nos antecederam, tanto delegados quanto conselheiros. As ilhas faziam parte da região com Humaitá e Navegantes. O desmembramento representou um grande ganho para a comunidade, porque a nossa região é diferenciada dentro de POA. Nós somos um arquipélago. O pessoal da Zona Sul, da Vila dos Sargentos e dos Bombeiros, está na beira do rio e apenas mora, é diferente, não são um arquipélago. O corpo geográfico deles é outro. Nós integrávamos o Parque Delta do Jacuí e hoje somos Área de Proteção Ambiental (APA). É possível morar, ter uma residência desde que nos adequemos às instruções normativas de uma APA. Nós estamos mais expostos e sensíveis. Não há interesse político em firmar nada lá. A Pintada é a 17ª e última região do OP. É a última região mesmo…
O que tu consideras uma liderança comunitária? Quais são as características de um líder? Como como é que a liderança é construída?
A base é respeito, transparência, coletividade e reunir o povo. Chamávamos reuniões para tratar de ônibus, de tudo. Mas sabe que não uso mais a palavra liderança, porque me considero voluntária comunitária. É preciso começar a mudar, porque a gente não lidera, a gente traz ideias para as pessoas, que recebem e compilam. É uma via de mão dupla para construir as ações em conjunto. Aqui, entra o papel das ONGs e associações, porque, se não fossem elas, não sei como seria.
Eu, por exemplo, estou presidente da Afrosol, a Associação Escola de Samba Afrocultural Unidos do Por do Sul, da Ilha da Pintada, do Bairro Arquipélago. É uma escola de samba comunitária. Nós, enquanto pretas e pretos, sempre fomos rechaçados por causa do racismo. E, por meio da cultura, fomos mostrando que tínhamos e temos capacidade de fazer.
Essa consciência começou a ser despertada por eu ver o sofrimento da minha mãe em não poder estudar, casar na igreja...Além de Bia, a benzedeira Leoni Gonçalves Pereira, 81 anos, tem, ainda, os filhos Rosimeri e Maximiliano. Na minha juventude, não podia entrar nos salões, não queriam me levar nos barcos e lá só tinha barcos. Todos os negros eram pisoteados, tudo era negado como se não fizéssemos parte.
Como está o Instituto Camélia depois da enchente? Como a comunidade está se organizando?
Graças à Fundação Gerações, que nos deu a mão e nos puxou para cima, conseguirmos andar. E o mais legal, além de toda a parte material que a Fundação nos proporcionou, foi olhar para nós, nos dar a mão e dizer: “Vamos levantar”. Distribuímos 300 cestas básicas nos lugares onde atuamos e tivemos a aprovação da ampliação das quitandas, um projeto que trabalha com mulheres periféricas e alimentos saudáveis. O pobre não consegue comer alimentos saudáveis. Isso só é possível a partir da parceria com cooperativas e preço justo. Além de alimento ser sinômimo de saúde, as quitandas ajudam a gerar renda para as mulheres negras e fazer a economia no bairro girar.
Aliás, qual o teu propósito ou que tu sonhas para a comunidade do arquipélago, para a região das ilhas?
Sonho com a ilha linda, com qualidade de vida, respeito, incluindo o meio ambiente, e harmonia, sendo valorizada pelo poder público, não sendo entregue ao poder econômico. É esse o nosso medo. Quero ver as pessoas com terrenos regularizados. Há espaços passíveis para regularização e estamos dialogando com a prefeitura. Sonho com o centro de POA olhando pra nós com outros olhos e não como coitados. Muitas das questões das ilhas não avançam porque estão em diferentes esferas (municipal, estadual e federal), porém acaba no município, seja quem estiver lá. É preciso um olhar humano e sério par as ilhas, da mesma forma como existe para outras áreas e bairros da cidade.
Tu e tudo o que representas receberam homenagem por meio do mural gigante no prédio do DAER. Só que, agora, a obra “Abre caminhos” está sob risco de ser removida por causa de obras no edifício. Inaugurada em 2022, não foi incorporada ao patrimônio do Estado até a data prevista, 31 de dezembro de 2024. Como a medida não ocorreu, o mural pioneiro na arte urbana da Capital permanece até que seja feita a reforma no imóvel, estimada para 2025. Qual é o teu sentimento diante disso?
Mais um apagamento do povo negro, o chicotinho levantado. A mulher negra, periférica, pobre e das ilhas, nunca esteve em destaque. Entendemos que o prédio é antigo, mas também representa a conquista de um povo e de uma comunidade. Aliás, naquele local, havia um quilombo onde as mulheres lavavam roupa no rio.